O papel da Suprema Corte: Uma leitura a partir de Johh Hart Ely

Nem tudo que é incompreensível deixa de existir.” Blaise Pascal1.

A proposição pascaliana de caráter metafísico parece ter pouca relação com o tema a que se propõe tratar aqui. Contudo, acaso não se poderia dizer o mesmo da condição e função do STF? Envolvido nas mais diversas polêmicas (de temas tributários a questões de Golpe de Estado), o télos do STF parece uma fata morgana: uma ilusão fascinante mas enganosa e incompreensível2.

Se isso fosse apenas uma discussão acadêmica, poder-se-ia trancá-la na torre de marfim que ela pertence e seguir tranquilamente com a vida. Não é o caso. A polêmica em torno da função e da condição do STF decorre justamente dos impactos práticos que ela projeta sobre a vida de milhões. Abordá-la é, pois, necessário – ainda que ad aeternum, mas nunca ad nauseam.

Quem quer que se proponha a esta tarefa, no entanto, deparar-se-á com inúmeras dificuldades. É preciso partir de algum lugar. Para isso, valemo-nos da construção teórica de John Hart Ely em “Democracia e Desconfiança”3.

Nela, Ely aponta para a insuficiência das duas principais teorias que buscam delinear o papel da suprema corte em decisões constitucionais: o interpretacionismo e o não interpretacionismo. O primeiro sustenta que ao juiz cabe simplesmente fazer cumprir as normas explícitas ou claramente implícitas no texto constitucional. O segundo, em contrapartida, defende que os tribunais podem ir além, tomando referências externas e até mesmo criando normas não claramente indicadas pela Constituição escrita.

É evidente que a exposição das correntes interpretacionista e não-interpretacionista aqui apresentada opera em certa chave de simplificação. A doutrina constitucional norte-americana – e mais ainda a brasileira – é muito mais matizada do que a divisão binária pode sugerir. No entanto, essa simplificação tem valor didático e serve ao propósito de evidenciar o dilema central que John Hart Ely busca enfrentar em Democracia e Desconfiança. O objetivo não é mapear todas as nuances da teoria constitucional, mas destacar a tensão fundamental entre um modelo que se pretende fiel ao texto e outro que se abre à incorporação de valores.

Ambas as teorias, porém, revelam-se insuficientes. O interpretacionismo fracassa porque a própria Constituição, ao empregar termos abertos e semanticamente flexíveis, aponta para a necessidade de interpretações que vão além de seu texto literal. Em outras palavras, o interpretacionismo conduz inevitavelmente ao não-interpretacionismo. Este, por sua vez, incorre em falha ainda mais grave: abre espaço para que juízes projetem seus próprios valores nas decisões constitucionais, comprometendo a noção democrática que deve fundamentar a ação do Estado moderno.

Como resolver este dilema?

Para Ely, a saída não está em escolher entre o interpretacionismo e o não-interpretacionismo, mas em reposicionar o papel da corte. Em vez de impor conteúdos substantivos à democracia, seja por apego literalista, seja por projeções valorativas dos juízes, a revisão judicial deve concentrar-se em garantir a abertura e a integridade do processo democrático. A tarefa da Suprema Corte, nesse sentido, não é dizer quais valores a sociedade deve adotar, mas assegurar que todos os grupos tenham acesso equitativo aos canais de participação política. A legitimidade da jurisdição constitucional, portanto, deriva de seu caráter procedimental: proteger as regras do jogo democrático, e não ditar seus resultados.

Ely recorre a diversos exemplos da Suprema Corte norte-americana para ilustrar sua concepção procedimental de revisão judicial. Um dos mais significativos está no caso Baker v. Carr (1962), em que a Corte enfrentou o problema da desigualdade na representação legislativa decorrente de distritos eleitorais desproporcionais. Ao afirmar o princípio “um homem, um voto”, a Suprema Corte não definiu qual política substantiva deveria prevalecer, mas apenas garantiu que o processo eleitoral refletisse de modo mais fiel a vontade popular. Nesse sentido, a decisão não foi um exercício de vontade judicial, mas uma intervenção destinada a desbloquear e reforçar os canais representativos da democracia.

Outro exemplo paradigmático mencionado por Ely está em United States v. Carolene Products (1938), especialmente na célebre nota de rodapé 4. Ali, a Corte indicou que a revisão judicial deveria ser particularmente rigorosa quando houvesse risco de exclusão de minorias políticas ou de obstrução da livre circulação de ideias no processo democrático. Em vez de se apresentar como portadora de valores morais últimos, a Corte assumiu a tarefa de corrigir distorções procedimentais, garantindo que todas as vozes tivessem a possibilidade de participar do debate público. Para Ely, esse tipo de atuação exemplifica o que se espera de uma Suprema Corte em uma democracia: menos legisladora de conteúdos, mais guardiã do processo.

Transposta ao contexto brasileiro, a proposta de Ely ilumina os dilemas contemporâneos do STF. Se a Corte se perde em decidir quais valores substantivos devem prevalecer na sociedade, corre o risco de transformar-se em protagonista político, usurpando funções próprias do legislativo e do debate público. Seu papel legítimo, contudo, é outro: agir como árbitro do jogo democrático, zelando para que as regras do processo sejam respeitadas e para que todos os participantes tenham igualdade de fazer ouvir suas vozes. Assim como em uma partida, o árbitro não marca gols nem define estratégias, mas garante que os jogadores ajam dentro das normas, também o STF deveria orientar sua autoridade para proteger os canais de representação e participação política, em vez de impor sua própria concepção de bem comum.

Não se ignora que a transposição do modelo de Ely para o contexto brasileiro encontra obstáculos significativos, sobretudo em razão da natureza peculiar da CF/88 e da jurisdição constitucional concentrada do STF. A Carta brasileira é extensa, analítica e repleta de direitos substantivos que demandam concretização judicial, o que parece desafiar a proposta de limitar a Corte a um papel meramente procedimental. Ainda assim, a teoria de Ely é utilizada aqui não como descrição empírica do que o STF faz ou pode realisticamente fazer, mas como lente normativa que nos ajuda a refletir sobre os riscos de uma jurisdição constitucional substantivista e sobre as virtudes de uma atuação voltada à preservação dos canais democráticos4.

Em tempos em que o STF oscila entre guardião e protagonista, revisitar Ely nos ajuda a distinguir miragem de realidade. A metáfora da Fata Morgana mostra-se oportuna: o télos da Corte pode parecer grandioso e redentor, mas se confundido com a imposição de conteúdos substantivos corre o risco de se dissolver como ilusão. O desafio, portanto, é resgatar o papel do árbitro, aquele que não joga, mas garante que o jogo democrático aconteça em condições justas. Eis a medida de uma Suprema Corte em uma democracia: menos tentada por visões messiânicas e mais comprometida com a integridade do processo político que sustenta a própria legitimidade de suas decisões.


1 PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).

2 CNN Brasil. Como voto de Fux na trama golpista pode afetar relação com ministros do STF. CNN Brasil, Brasília, 11 set. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/como-voto-de-fux-na-trama-golpista-pode-afetar-relacao-com-ministros-do-stf/. Acesso em: 12 out. 2025.

3 ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução de Juliano Maranhão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

4 PEREIRA, Carlos André Maciel Pinheiro; ALVES, Jordy Andrade; SILVA, Samuel Gênesis Abraão. A jurisdição constitucional procedimental em John Hart Ely e o instituto do amicus curiae”. Revista Jurídica La Bem-Estar, ano 9, n. 6, p. 377-413, 2023. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2023/6/2023_06_0377_0413.pdf. Acesso em: 12 out. 2025.

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