A consensualidade no Direito Administrativo e o acordo de não persecução cível

No âmbito do Direito Administrativo, a consensualidade vem cada vez assumindo um papel mais importante, a ponto de até mesmo se falar em um novo paradigma nesse ramo do Direito, superando a vetusta weltanschauung que tomava como axioma irrenunciável a atuação unilateral da administração, baseada tão somente no interesse público (e em sua indisponibilidade e supremacia).

O que aqui se diz não fica somente no âmbito da teoria e da dogmática jurídica. Vamos além de uma torre de marfim jurídica. Na verdade, essa mudança de paradigma do Direito Administrativo se reflete, também, na própria legislação.

Com efeito, a própria ação civil pública (ACP), ao se remeter ao Código de Processo Civil como subsidiário, permite a transação no bojo do processo. Dessa maneira, não obstante a supremacia e indisponibilidade do interesse público, as soluções consensuais para tais os casos englobados pela ACP já eram plenamente possíveis, o que, contudo, até bem pouco tempo, não ocorria com os casos de improbidade administrativa.

Isso porque, na Lei de Improbidade Administrativa (LIA), previa-se expressamente no parágrafo 1º do artigo 17 da impossibilidade de se qualquer ao dispor que: É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput, disposição que, corretamente, era severamente criticada pela doutrina, que não enxergava nela nenhuma raison d’être, sobretudo porque, a exemplo da ACP, tal procedimento já era permitido.

Com o advento do pacote anticrime, contudo, tal cenário foi profundamente modificado na medida em que o trecho supramencionado foi inteiramente revogado, criando-se a figura do acordo de não persecução cível (ANPC) na seara administrativa, afastando-se qualquer dúvida sobre a (im)possibilidade de transação nesse campo do Direito.

Contudo, o ANPC foi severamente prejudicado pelos vetos presidenciais, que, em última análise, apenas permitiram o seu advento, sem, contudo, permitir que seus contornos fossem adequadamente delineados.

Resultado? Muitas questões permanecem em aberto sobre a sua aplicação.

Exemplo: o parágrafo 10-A do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa, inserido pelo pacote “anticrime”, assim dispõe: § 10-A. Havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 dias”.

Isso significa, portanto, que, após a contestação, o ANPC não poderá ser requerido pelas partes?

Nos posicionamos no sentido de que, até que haja o trânsito em julgado da sentença, há a possibilidade de celebração do ANPC.

Caso contrário, estar-se-ia violando preceito básico da hermenêutica jurídica, qual seja: onde o legislador não restringiu não cabe ao intérprete fazê-lo, conforme entendimento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça:

“A prevalecer o entendimento do Poder Executivo, seria conclusão lógica que o acordo de não persecução estaria vetado para ações que estejam em trâmite, embora não se possa extrair tal inferência da legislação em vigor. Ao revés, um acordo dessa magnitude estaria autorizado pelo artigo 17, §1º, da lei 8.429/1992 que não traz quaisquer ressalvas no que tange à possibilidade de transação nas ações em curso. A par disso, se a intenção fosse impedir a celebração do acordo nas ações de improbidade já ajuizadas, o legislador deveria, expressamente, proibir tal prática. Não vislumbramos, nesse alinhavar, qualquer óbice, de ordem legal ou hermenêutica, para que sejam realizados acordos nas ações em curso, máxime porque ‘é regra comezinha de interpretação legal a assertiva segundo a qual, onde o legislador não distingue, não cabe ao interprete fazê-lo'” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de declaração no Mandado de Segurança 22.157/DF. Relator: ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em: 14/3/2019. Acesso em: 11 set. 2020).

No acordo de não persecução penal (ANPP), análogo à sua celebração: enquanto a 5ª Turma do STJ entende cabível a celebração do acordo na esfera penal somente até o recebimento da denúncia, a 6º Turma, desse mesmo STJ, tem entendido de maneira diversa, permitindo que o acordo seja celebrado, como aqui se defende, até o trânsito em julgado da sentença.

No âmbito do Ministério Público, por outro lado, parece estar pacificado o entendimento de que a contestação não serve como limite temporal da celebração do ANPC.

Com efeito, o Ministério Público Federal, muito recentemente, reforçando o entendimento acima esposado, por meio da Procuradoria Regional da 1ª Região, confeccionou orientações sobre a celebração de acordo de não persecução cível [1].

Nele, ficou estabelecido, em seu artigo 1º, que o acordo poderá ser estabelecido no curso da ação judicial de improbidade administrativa, desde que seja observado o interesse público [2].

Além disso, um outro aspecto que igualmente pode ser questionado diz respeito a uma facultas agendi, isto é, um direito subjetivo do réu em celebrar o ANPC.

Há múltiplos posicionamentos. Parece-nos, contudo, ser desproporcional e desarrazoado supor que não, sobretudo quando o réu preenche os requisitos estipulados para a sua celebração. A negativa de celebração, nesses casos, nada mais nos pareceria do que afronta direta ao princípio constitucional da isonomia.

Essa questão, aliás, relaciona-se ao que dizemos no início deste texto, ao criticar os vetos presidenciais ao ANPC, que acabaram por mitigar o escopo regulatório do pacote “anticrime”.

Dessa maneira, deu-se margem para o surgimento dos assim chamados instrumentos soft law”, a exemplo de: resoluções, enunciados, orientações etc. Instrumentos que, longe de representarem a vontade democrática, acabam por permitirem que, de maneira extra legem, criem-se entraves à celebração do ANPC, sobretudo quando se busca saciar uma sanha punitivista que não encontra limites.

Como se vê, portanto, a conjuntura legal trazida pelo pacote “anticrime” é bastante complexa e acaba gerando uma série de efeitos no jogo processual das ações de improbidade administrativa.

E, por ter-se diminuído o escopo regulatório do pacote “anticrime”, muitas questões permaneceram (e permanecerão) em aberto até que sejam devidamente sedimentadas pelo processo jurisprudencial.

Até lá, é dever dos operadores do Direito atuar para que essas questões sejam resolvidas sempre em vista dos princípios constitucionais e da legislação vigente, a fim de que sejam preservados os direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos.

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[1] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Orientações sobre a celebração de acordo de não persecução cível no âmbito do NIDCIN/PRR 1A. REGIÃO. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/regiao1/sala-de-imprensa/docs/normativo-anpc. Acesso em: 12 out 2020.

[2] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Orientações sobre a celebração de acordo de não persecução cível no âmbito do NIDCIN/PRR 1A. REGIÃO. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/regiao1/sala-de-imprensa/docs/normativo-anpc. Acesso em: 12 out 2020.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-dez-25/adriano-silva-consensualidade-acordo-nao-persecucao-civel/

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